Rubem Alves
- Ao que tudo indica, comer um tijolo diariamente faz mal à saúde.
- Mais que dois maços de cigarro.
- No entanto, nunca encontrei médico que combatesse este pernicioso hábito.
- Falam do perigo do torresmo, das picanhas engorduradas, das frituras, do açúcar, da vida sedentária, da cerveja...
- Mas sobre o perigo da ingestão de tijolos o silêncio é total. Claro.
- Não é preciso.
- Ninguém deseja comer tijolos.
- A proibição aparece somente no lugar onde mora o desejo.
- Os bombeiros só são chamados quando existe incêndio.
- Está proibido (inutilmente) cobiçar a mulher (e o marido) do próximo.
- Porque se cobiça, é óbvio.
- E também está comandado honrar pai e mãe, porque, imagino, até os escritores sagrados sabiam sobre Édipo,
- a sinistra mistura de ódio e desejos proibidos que estão misturados nas relações entre pais e filhos.
- E se está proibido matar e roubar é porque estes desejos estão bem vivos dentro da gente.
- A proibição revela sempre a presença do seu oposto, no lado do avesso, escondido.
- Vai isto como introdução à continuação de nossas meditações demonológicas, já iniciadas.
- Para absolver o Diabo de uma acusação injusta que sempre se lhe faz, de que ele coloca desejos impuros
- na cabeça dos pobres mortais.
- Nada mais longe da verdade.
- Este poder não lhe foi concedido.
- Não se pode colocar um desejo no coração de ninguém.
- O que se pode fazer é abrir as portas para que os que já existem, trancados e silenciados, apareçam na sala de visitas
- onde os convivas, na companhia grave de clérigos e princípios de moral,
- falam sobre as coisas com as quais todos concordam e que
- não fazem ninguém enrubescer.
- O Diabo não joga porcaria dentro da fonte.
- Ele só mexe no lodo que repousava no fundo da água limpa.
- E aí começam a surgir sapos, cobras, escorpiões - e o rosto de Narciso vira coisa feia.
- Mas não é só isto que as artes do Diabo fazem aparecer.
- O fundo das águas é lugar encantado, onde moram também lindas criaturas, sereias, iaras, borboletas de asas coloridas,
- gaivotas plainantes no ar, barcos à vela entrando no mar, e até mesmo uma bela adormecida.
- Vivem lá, submersas, esquecidas...
- Mas quem as submergiu?
- Nós mesmos. Algumas, por serem feias demais.
- Foram escondidas por vergonha, como antigamente se escondiam os urinóis nos criados-mudos.
- Outras, por serem belas demais, ousadas demais, livres demais, e faltar-nos coragem para tomá-las como companheiras:
- por medo de voar, por medo de navegar, por medo de amar.
- A beleza faz convites que assustam...
- Pois é só isto que o Diabo faz: ele acorda os desejos que já moravam em nós.
- Ele não bota o ovo.
- Só quebra o ovo que nós botamos, para ver o que tem lá dentro, se vida ou morte.
- Sutil.
- Sutilíssimo.
- Os textos sagrados dizem que a serpente era a mais sutil de todas as criaturas que Deus havia colocado no Jardim.
- Escorrega com fala mansa até o lugar onde moram os nossos desejos.
- Cheguei a pensar que ela foi o primeiro psicanalista, pois ambos estão à procura da mesma coisa:
- os desejos esquecidos.
- É aí que começa a segunda parte da sua tarefa.
- Primeiro soltou os desejos.
- Depois, como sutil testador, nos coloca a questão: "Você sabe que não é possível ficar com todos.
- É preciso escolher. Se você tivesse de rejeitar todos, menos um, qual seria o escolhido?
- Onde está o seu coração?
- Qual é a sua verdade?"
- E começa a fazer como os oftalmologistas que colocam uma lente e depois outra no nosso olho e dizem:
- "Esta ou aquela?" O que é que você ama mais?
- Qual é a sua verdade?
- E nos vai despetalando, como quem despetala uma flor, para ver o que sobra, para ver o que somos. Pois somos o que desejamos.
- A alma é um espaço onde se ouvem as mais distintas melodias, selvagens ritmos de tambores, cósmicos corais gregorianos,
- bandas de rock metaleiro, flautas doces, canções de ninar, canções de amar, marchas militares - tudo ao mesmo tempo.
- E o Diabo nos faz decidir: "Esta ou aquela?" Afinal, qual é a sua?
- E chegamos então a esta estranha conclusão:
- o testador está a serviço do amor. Vai nos obrigando a decidir.
- Na medida em que decidimos, os contornos de nosso rosto vão ficando cada vez mais claros,
- refletidos na água das fontes.
- Álvaro de Campos tem um verso que diz mais ou menos assim:
- "Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim."
- Intervalo, um espaço indefinido onde a minha verdade se perdeu, enfeitiçada pelo pedido dos outros.
- Os outros pedem que não sejamos o que somos; que sejamos só o que eles desejam.
- E ficamos sem rosto. Só máscaras. Cebolas sem cerne, só casca.
- O Diabo nos coloca entre o martelo e a bigorna e vai nos forçando a tomar decisões.
- Pode ser que, ao final, tenhamos a experiência suprema de horror.
- Quando, diante do espelho, não vemos rosto algum, apenas os rostos de outros.
- Acho que é por isto que todo mundo fala mal do Diabo:
- porque, além de ser ferreiro de martelo e bigorna,
- é também especialista em beleza, com espelho na mão.
- E o reflexo no
- espelho dói mais que o martelo na bigorna...
Maravilhosa analogia, amiga!!!!
ResponderExcluirNossa, amei teu texto.
bjs
Texto muito profundo, que nos mostra nossas verdadeiras faces,medos e anseios
ResponderExcluirBeijos e um ótimo dia pra você!
Tenha um bom dia! Muitos beijinhos.
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