Por:ROBERT BLY
Atrás de nós temos uma sacola invisível e, para conservar o amor de nossos pais, nela colocamos a parte de nós que nossos pais não apreciam. Quando começamos a ir à escola, nossa sacola já é bastante grande, E aí nossos professores nos dizem: "O bom menino não fica bravo com coisinhas à-toa", e nós guardamos nossa raiva na sacola.
Depois fazemos o colegial e passamos por outro bom processo de guardar coisas na sacola.
Qualquer parte de mim que fosse mais "lenta" ia para a sacola. Meus filhos passam
agora por esse processo, que eu já tinha observado nas minhas filhas, mais velhas que eles.
Minha mulher e eu olhávamos, consternados, quantas coisas elas colocavam na sacola, mas não
havia nada que pudéssemos fazer. Minhas filhas pareciam tomar suas decisões com base na
moda e nos ideais coletivos de beleza, e sofriam tanta pressão das amiguinhas quanto dos
rapazes.Por isso sustento que o jovem de 20 anos conserva uma simples fatia daquele globo de
energia. Imagine um homem que ficou com uma fina fatia — o restante do globo está na sacola
— e que ele conhece uma mulher; digamos que ambos têm 24 anos de idade. Ela conservou
uma fina e elegante fatia. Eles se unem numa cerimônia e essa união de duas fatias chama-se
casamento. Mesmo unidos, os dois não formam uma pessoa! É exatamente por isso que o
casamento, quando as sacolas são grandes, acarreta solidão durante a lua-de-mel. Claro que
todos nós mentimos a esse respeito. "Como foi sua lua-de-mel?" "Fantástica, e a sua?"
Cada cultura enche a sacola com conteúdos diferentes. Na cultura cristã, a sexualidade
geralmente vai para a sacola. E, com ela, muito da espontaneidade. Por outro lado, MarieLouise von Franz nos alerta para não sentimentalizarmos as culturas primitivas assumindo que
elas não tinham nenhuma sacola. Ela diz que, na verdade, essas culturas tinham sacolas
diferentes das nossas e, às vezes, até maiores. Talvez colocassem nelas a individualidade ou a
inventividade. Aquilo que os antropólogos conhecem como "participação mística" ou "a
misteriosa mente comunal" pode parecer muito bonito, mas talvez signifique apenas que todos
os membros da tribo conhecem exatamente a mesma coisa e nenhum deles conhece nada além
disso. E possível que as sacolas de todos os seres humanos sejam mais ou menos do mesmo
tamanho,
Passamos nossa vida até os 20 anos decidindo quais as partes de nós mesmos que poremos
na sacola e passamos o resto da vida tentando retirá-las de lá. Algumas vezes parece impossível
recuperá-las como se a sacola estivesse lacrada. Vamos supor que a sacola está lacrada — o que
acontece?... Uma grande novela do século XIX ofereceu uma idéia a respeito. Certa noite,
Robert Louis Stevenson acordou e contou para a mulher um trecho do sonho que acabara de ter.
Ela o convenceu a escrevê-lo, ele o fez e o sonho tornou-se o "Dr, Jekyll e Mr. Hyde". O lado
agradável da personalidade torna-se, na nossa cultura idealista, cada vez mais agradável, O
homem ocidental talvez seja, por exemplo, um médico liberal que só pensa em fazer o bem. Em
termos morais e éticos, ele é maravilhoso. Mas a substância na sua sacola assume personalidade
própria; ela não pode ser ignorada. A história conta que a substância trancada na sacola aparece,
certo dia, em uma outra parte da cidade. Ela está cheia de raiva e, quando finalmente é vista,
tem a forma e os movimentos de um gorila.
O que essa história conta é que quando colocamos uma parte de nós na sacola, essa parte
regride. Retrocede ao barbarismo. Imagine um rapaz que lacra a sacola aos 20 e espera uns
quinze ou vinte anos para reabri-la. O que ele irá encontrar? É triste, mas toda a sexualidade,
selvageria, impulsividade, raiva e liberdade que ele colocou na sacola regrediram; não apenas
seu temperamento se tornou primitivo como elas agora são hostis à pessoa que abre a sacola. O
homem ou a mulher que abrem a sacola aos 45 anos sentem medo. Eles dão uma olhada e vêem
a sombra de um gorila se esgueirando contra a parede; ora, qualquer pessoa que veja uma coisa dessas fica
aterrorizada!
Pode-se dizer que, na nossa cultura, a maioria dos homens coloca o seu lado feminino (a
mulher interior) na sacola. Quando ele quer, lá pelos 35 ou 40 anos, entrar novamente em
contato com o seu lado feminino, a mulher interior talvez lhe seja bastante hostil. Nesse meio
tempo, ele está enfrentando a hostilidade das mulheres no mundo exterior. A regra parece ser: o
lado de fora é um espelho do lado de dentro. É assim que as coisas são neste nosso mundo. E a
mulher que queria ser aceita pela sua feminilidade e para isso guardou seu lado masculino (o
homem interior) na sacola, talvez descubra, vinte anos mais tarde, que ele lhe é hostil. Talvez
ele também seja insensível e brutal em suas críticas. Essa mulher estará em apuros. Viver com
um homem hostil dará a ela alguém a quem censurar e aliviará a pressão, mas não resolverá o
problema da sacola fechada. Nesse meio tempo, ela está propensa a uma dupla rejeição: a do
homem interior e a do homem exterior. Existe muita dor nisso tudo.
Cada parte da nossa personalidade que não amamos tornar-se-á hostil a nós. Ela também
pode distanciar-se de nós e iniciar uma revolta contra nós. Muitos dos problemas sofridos pelos
reis de Shakespeare desenvolveram-se a partir daí. Hotspur, lá "no País de Gales", rebela-se
contra o rei. A poesia de Shakespeare é maravilhosamente sensível ao perigo dessas revoltas
interiores. O rei, no centro, sempre está em perigo.
Quando visitei Bali há alguns anos, percebi que essa antiga cultura hindu utiliza a mitologia
para trazer à luz do dia os elementos da sombra. Os templos encenam, quase todos os dias,
representações do Ramayana. Algumas peças aterrorizantes são encenadas como parte do
cotidiano da vida religiosa. Diante da maioria das casas balinesas existe uma figura esculpida
em pedra: hostil, feroz, agressiva e com grandes dentes aguçados. Sua intenção não é fazer o
bem. Visitei um fabricante de máscaras e vi seu filho, de 9 ou 10 anos, sentado diante da casa a
esculpir, com seu cinzel, uma figura hostil e raivosa. O objetivo desse povo não é dissipar as
energias agressivas — tal como nós fazemos com o nosso futebol ou os espanhóis com as suas
touradas. Seu ideal é fazer essas energias emergirem na arte. Os balineses talvez sejam violentos
e brutais na guerra mas, na vida cotidiana, parecem ser bem menos violentos que nós. O que
isso significa? As pessoas do Sul dos Estados Unidos colocam no jardim anõezinhos negros de
ferro forjado, como ajuda; nós, no Norte, fazemos o mesmo com pacíficos veadinhos. Gostamos
de rosas no papel de parede, Renoir sobre o sofá e John Denver no aparelho de som. Então a
agressividade escapa da sacola e ataca a todos.
Abandonemos o contraste entre as culturas balinesa e americana e sigamos em frente. Quero
falar sobre a ligação entre as energias da sombra e o projetor de cinema. Vamos supor que
miniaturizamos algumas partes de nós mesmos, as enrolamos como um filme e colocamos
dentro de uma lata, onde elas ficarão no escuro. Então uma noite — sempre à noite — as formas
reaparecem, imensas, e não conseguimos desviar nossos olhos delas. Estamos dirigindo à noite,
fora da cidade, e vemos um homem e uma mulher numa enorme tela de cinema ao ar livre;
paramos o carro e observamos, Algumas formas que foram enroladas dentro da lata
(duplamente invisíveis, por estarem só parcialmente "reveladas" e por terem sido mantidas na
escuridão) existem, durante o dia, apenas como pálidas imagens numa fina tira de celulóide
cinzento. Quando uma certa luz se acende por trás de nós, formas fantasmagóricas aparecem na
parede à nossa frente. Elas acendem cigarros: ameaçam os outros com revólveres.
Nossa psique, portanto, é uma máquina natural de projeção; podemos recuperar as imagens que guardamos
enroladas na lata e projetá-las para os outros ou sobre os outros.
Extraído do livro:Encontro-Da-Sombra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Muito obrigada pela visita.
Volte sempre!!
Rejane