Lya Luft
Sobre a sensação de onipotência que esse mundo novo nos confere, lembro a história deliciosa do aborígine que, contratado para guiar o cientista carregado de instrumentos refinados, lhe disse: "Você e sua gente não são muito espertos, porque precisam de todas essas ferramentas simplesmente para andar no mato e observar os animais".
Cibernéticos
e virtuais, nadamos num rio de novidades e nos consideramos
moderníssimos. Um turbilhão de recursos trazidos pela ciência, pela
tecnologia, nos atrai ou confunde. Se somos mais velhos, nos faz crer
que jamais pegaremos esse bonde - embora ele seja para todos os que se
dispuserem a nele subir, não necessariamente para ser campeões ou
heróis.
A
tecnologia abre territórios fascinantes, e ameaça nos controlar: se
pensarmos um pouco, sentiremos medo. O que mais vem por aí, quanto
podemos lidar com essas novidades, sem saber direito quais são as
positivas, quanto servem para promover progresso ou para nos exterminar
ao toque do botão de algum demente no poder? Exageradamente entregues a
esses jogos cada dia inovados, vamos nos perder da nossa natureza real,
o instinto? Viramos homens e mulheres pós-modernos, sem saber o que
isso significa; somos cibernéticos, somos twitteiros e blogueiros, mas
não passamos disso. E, se não formos muito equilibrados, vamos nos
transformar em hackers, e o mundo que exploda.
Sobre a sensação de onipotência que esse mundo novo nos confere, lembro a história deliciosa do aborígine que, contratado para guiar o cientista carregado de instrumentos refinados, lhe disse: "Você e sua gente não são muito espertos, porque precisam de todas essas ferramentas simplesmente para andar no mato e observar os animais".
Não
vamos regredir: a civilização anda segundo seu próprio arbítrio. Mas,
como quase todas as coisas, seus produtos criam ambiguidade pelo
excesso de aberturas e pelo receio diante do novo, que precisa ser
domesticado, para se tornar nosso servo útil. As possibilidades do
mundo virtual são quase infinitas. Sua sedução é intensa. Tão enganador
quanto fascinante, no que tange à comunicação. Imenso, variado,
assustador, rumoroso, ameaçador, e frio, porque impessoal. Nesse mundo
difuso somos quase onipotentes, sem maior responsabilidade, pois cada
ação nem sempre corresponde a uma consequência - e ainda podemos nos
esconder no anonimato. Criam-se sérias questões morais e éticas não
resolvidas nesse território: através da mesma ferramenta que nos abre
universos e nos comunica com o outro, caluniamos e somos caluniados,
ameaçamos e somos ameaçados, nos despersonalizamos, nos entregamos a
atividades estranhas, algumas perversas; espiamos, espreitamos,
maldizemos amigos e desconhecidos, odiamos celebridades, cortamos a
cabeça de quem se destaca porque se torna objeto de inveja e
ressentimento, escutamos mensagens sombrias e cumprimos, talvez, ordens
sinistras.
Relacionamentos
pessoais começam e terminam, bem ou mal, nesse campo virtual - não
muito diferente do mundo dito real, dos bares, festas e trabalho,
faculdade e escola. Para as crianças, esse universo extenso e invasivo
pode ser uma grande escola, um mestre inesgotável, um salão de jogos
divertido em que elas imediatamente se sentem à vontade, sem os limites
dos adultos. Mas pode ser a estrada dos pedófilos, a alcova dos
doentes, ou a passagem sobre o limite do natural e lúdico para o
obsessivo e perverso.
Como
quase tudo neste mundo nosso, duplo é o gume: comunicar-se é positivo,
mas sinais feitos na sombra, sem verdadeiro nome nem rosto, podem
acabar em fantasmáticas perseguições e males. Singularmente, mas de
maneira muito significativa, enquanto estamos velozes e espertos no
computador, criando mundos virtuais, e jogando jogos cada vez mais
complexos, buscamos o nevoeiro desse anonimato e, na época das maiores
inovações, curtimos voar com bruxos em suas vassouras, namorar vampiros
e inventar avatares que vão de engraçados a sinistros.
Estimulante,
múltiplo, tão rico, resta saber o que vamos fazer nesse novo mundo - ou
o que ele vai fazer de nós. Quando soubermos, estaremos afixados nele
como borboletas presas com alfinete debaixo da tampa de vidro ou
vaga-lumes em potes de geleia vazios, naquelas noites de verão quando a
infância era apenas aquela, inocente, que ainda espia sobre nossos
ombros.
Fonte: Revista Veja
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